quarta-feira, 2 de agosto de 2017

O silêncio do fogo na voz da dor...


*“Estamos tão cansados, mas não podemos estar. Os mortos não se calam e não nos deixam cansar. Gritam por justiça! Exigem mudança!
A Associação das Vítimas do Incêndio de Pedrógão Grande é um movimento cívico que partiu dos familiares e amigos das vítimas mortais da tragédia [do grande, brutal e devastador incêndio que lavrou do dia 17 a 24 de Junho de 2017  nos concelhos de Pedrógão Grande, Figueiró dos Vinhos e Castanheira de Pêra]. Uma associação cujo mote é apurar responsabilidades e ajudar a construir um futuro em que tal tragédia e crueldade não volte a acontecer.
(...) Olho à volta e as pessoas não se riem, choram sozinhas, acanhadas, não se olham nos olhos, com vergonha pela sua impotência, com medo; o cenário é deprimente e não nos ajuda a superar com dignidade a tragédia. O inverno não tarda e com ele as ruas despidas de vida (…)
Há rancor, ressentimento com o território e com as entidades públicas. O Estado falhou. A Nação não existiu. Mas não falhou apenas nesta tragédia. O Estado vem falhando ao longo de décadas. O Estado padece de uma cegueira crónica, está enfermo de um tal sentimento de negação de si próprio. Nega o seu estado de país rural, um país orgulhosamente rural e por isso mesmo rico.

(…) O Estado falhou nesta tragédia levando consigo o sentimento de pertença de Nação que tínhamos. Não assegurou o seu Território e com ele o seu Povo… Fomos vítimas desta ausência insuportável de Estado. Ontem e hoje. Mas não amanhã, porque já chega de incêndios que ceifam vidas. Incêndios como os de 2003, 2005 e Junho de 2017, que contabilizam até à data, 100 vítimas mortais em solo português, não podem voltar a acontecer.
É hora de todos dizermos “Basta!”. Este Estado que não quer ver secou uma parte importante da sua Nação, aquela que moveu este país durante séculos, o Interior. A primeira muralha e frente de defesa no Passado contra as invasões estrangeiras, o celeiro do País em tempos de vacas magras, o emissor de soldados nas guerras ultramarinas, o mercado de mão-de-obra barata em tempos de construção europeia… Quando o Interior e os seus recursos já não eram precisos, substituídos pela oferta de bens e serviços mais baratos, o Povo e o Território do interior foram abandonados à sua sorte. Emigrem! E assim o fizeram abandonados á sua sorte.
Não houve solidariedade em tempos de vacas gordas, não houve estratégia para o Território quando os dinheiros dos fundos estruturais chegavam a rodos.. Foram anos de esquecimento, de esvaziamento  progressivo e consitente das instituições regionais e locais, depois seguiram-se as empresas e por fim as pessoas. Sobreviver é preciso. Foram sucessivas décadas de descaso com o Interior, de negligência com o Território, com a Floresta e a Agricultura. Tendo como consequência a emigração das pessoas em idade activa, restando uma povoação envelhecida e empobrecida a exigir cuidados redobrados do pouco Estado [que restou e que nos foi esventrado] e sobretudo das autarquias locais e das misericórdias. Parecia propositado... o Interior tornou-se terra de ninguém, envergonhado de o ser, abandonado e, assim, por fim, vergado.
Deveríamos dar graças por nos termos tornado a maior região eucaliptizada da Europa... Fomos agraciados pala falta de oportunidade! O Território estava a saldo e ninguém quis saber.

O Interior tornou-se um canteiro de ervas daninhas, sem jardineiro – as suas gentes. Um barril de pólvora a que se soma a indústria do fogo institucionalizada e um qualquer ano eleitoral. Os ingredientes ideais para a tempestade perfeita. A tragédia de 17 a 24 de Junho de 2017 estava mais que anunciada. Foi apenas uma questão de tempo… e o tempo não pára. E com ele foram muitas vidas abreviadas. Cedo de mais… cedo de mais! Por ti meu filho…

*Fragmento do testemunho de Nádia Piazza, mãe de uma criança de 5 anos que morreu em Pedrógão Grande, publicado no Público de 23 de Julho de 2017.
Comentário: a perda de um filho é a maior tragédia que pode acontecer a uma mãe. Mas, atentas as circunstâncias em que aconteceu aquela que vem descrita, a situação assume foros de verdadeira hecatombe!  Registo a chamada de atenção para a negligência dos dirigentes, quando refere "assim se vai governando Portugal. Sem pactos de regime e visão a longo prazo. Vão-se puxando o tapete uns aos outros, não se apercebendo que , por fim, só restam cacos, dor e tristeza para governar."
Daí que se perceba o grito de dor e revolta "já chega de incêndios que ceifam vidas. Basta! ".
Admirável discurso duma mãe que recusa entregar-se à simples lamúria e, em vez disso, transmite palavras de esperança e exortação.

Sem comentários:

Enviar um comentário